Processo polêmico que autoriza, mas não obriga, o procedimento em caso de fetos com malformação cerebral tramita desde 2004
Publicado em 10/04/2012, 13:44
Última atualização às 18:51
São Paulo – Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) começam a julgar amanhã (11) um dos temas mais polêmicos no país: a permissão para o abortamento de fetos anencéfalos. Embora o termo signifique “sem cérebro”, anencefalia é uma malformação cerebral que ocorre ainda no primeiro mês de gestação, devido à carência de ácido fólico (uma vitamina do complexo B), comprometendo o desenvolvimento do encéfalo e da calota craniana. Há um caso da doença em cada 1,5 mil nascidos vivos. Na maioria dos casos (75%), o feto morre durante a gestação. Os 25% que nascem, em geral, têm sérias deficiências e a maioria morre nas primeiras horas depois do nascimento. Apesar de raros, há casos em que o recém-nascido sobrevive por alguns dias.
Os ministros vão analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, uma ação protocolada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A entidade defende a descriminalização do aborto – nesse caso chamado de antecipação terapêutica do parto – quando se tratar de gestação de feto anencéfalo. A justificativa é a ofensa à dignidade humana da mãe que é obrigada a levar adiante uma gestação que, se não terminar em abortamento espontâneo, culminará com o nascimento de uma criança que pouco viverá logo após o nascimento.
Em 2004, o ministro relator, Marco Aurélio Mello, concedeu liminar autorizando o aborto quando a deformidade fosse atestada por laudo médico. A justificativa era de que, “diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar”.
Três meses depois, por maioria de votos, o plenário do STF decidiu cassar a liminar concedida pelo relator. Em 2008 foram realizadas audiências públicas nas quais foram ouvidos representantes do governo, especialistas, entidades religiosas e da sociedade civil.
Naquele mesmo ano, a organização Católicas pelo Direito de Decidir e a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em bioética na América Latina, encomendaram pesquisa ao Ibope para conhecer a opinião dos brasileiros sobre o tema. Foram ouvidas 2.002 pessoas em todos os estados e no Distrito Federal. Dos entrevistados, 70,5% da população geral e 72,2% dos declarados católicos disseram concordar que a mulher grávida de um feto anencéfalo pode escolher se interrompe ou não a gestação; para 77% é obrigação do Estado atender às mulheres; para 71%, obrigar uma mulher a manter até o final a gestação de um feto com essa anomalia, contra sua vontade, é uma forma de tortura. Entre os católicos, o número sobe para 72,5%. Já para 77,6%, os hospitais públicos têm o dever de atender a mulher que optar pela interrupção da gravidez nesses casos, índice que aumenta para 78,7% entre católicos.
Direito
O advogado Joaquim José da Silva Filho, diretor jurídico da CNTS, que representa mais de 2,5 milhões de profissionais de saúde em todo o país, entre eles médicos, enfermeiros e pessoal administrativo, está confiante que os ministros decidirão pela descriminalização. Segundo ele, várias questões influíram no ajuizamento da ação. “Uma mãe que está gerando um feto anencéfalo não pode ser obrigada a abortar, mas entendemos ser um direito dela dispor de seu próprio corpo e fazer o aborto. O que queremos com essa ação é que a mulher tenha o direito de optar sem ser criminalizada por isso”, diz. Conforme o advogado, há ainda a necessidade de proteger médicos e enfermeiros que venham a atender às mulheres que optem pela interrupção da gravidez de anencéfalo.
A ideia é compartilhada pelos conselhos regionais de medicina e por entidades que defendem a liberdade das mulheres, especialmente quanto à reprodução. “Elas não podem ser obrigadas a abortar e nem a levar adiante uma gestação. É complicado para a mulher gestar uma criança e saber que vai ter de enterrá-la logo que nascer. Além do direito à decisão, deve ser garantida toda a assistência médica e psicológica num momento tão delicado como esse”, diz Rosangela Talib, da equipe de coordenação das Católicas pelo Direito de Decidir.
Rosangela defende ainda que o anteprojeto do novo Código Penal, em fase final de elaboração, inclua um artigo que descriminalize o aborto de feto com anencefalia ou qualquer outra malformação que impeça a vida autônoma.
Eugenia
Entretanto, há setores que analisam a questão de maneira diferente. Lenise Garcia, professora do Departamento de Biologia da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, organização supra-partidária e supra-religiosa que defende a vida desde sua concepção, entende que a medida, se aprovada, junta duas questões morais: o aborto e a eutanásia.
“No primeiro mês de gestação, a falta de ácido fólico pode levar a um problema no desenvolvimento do osso da calota craniana, que não fecha totalmente. Mas cada caso é um caso. Não é possível fazer um prognóstico sobre a evolução daquele caso específico”, diz Lenise. Ela menciona a menina Vitória de Cristo, de São Paulo, que já completou 2 anos de vida apesar da anencefalia. “Uma cirurgia fechou a cabeça da menina. É claro que ela tem deficiências graves, mas está sobrevivendo, demonstra reconhecer a mãe. Há ainda um caso que conheço de diagnóstico de anencefalia. A criança não só sobreviveu como hoje é estudante da faculdade de direito.”
Para Lenise, independentemente do tempo que viverá fora do útero, o feto tem o direito à vida. Segundo ela, negá-lo é antecipar a morte, como ocorre na eutanásia. “Se podemos tirar a vida de uma criança que vai morrer, por que não a de um idoso ou a de um doente que também não tem chances de sobreviver?”, questiona.
Outra preocupação é que a descriminalização estaria associada à eugenia, uma tentativa de aperfeiçoamento da raça humana, limitando a reprodução aos “melhores”. Ela lembra que a Constituição Federal determina que todos têm direito à vida. “E não à vida digna ou plena, termo defendido por muitos constituintes.” Segundo ela, em vários países não nascem mais crianças com Síndrome de Down porque, logo após o diagnóstico, já é feito o aborto. “Há casos na França de pais que processam médicos que não diagnosticaram a síndrome em seus filhos antes do nascimento, o que teria levado ao abortamento. O ser humano acaba comparado a um produto com defeito, que deve ser devolvido.”
A professora da UnB rebate ainda o sofrimento físico e psíquico das gestantes. Para ela, a dor de quem está gestando um anencéfalo não terá alívio com o abortamento. “O conforto vem com a condução da gravidez até o final, com a certeza de ter feito por aquele filho tudo o que podia ter feito. Ao abortar, a mulher não vai limpar de sua mente o fato de ter gerado um filho anencéfalo.”
Na última sexta-feira (6), a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviou carta a todos os bispos do país convocando para uma vigília de oração às vésperas do julgamento. Para a CNBB, a "vida deve ser acolhida como dom e compromisso, mesmo que seu percurso natural seja, presumivelmente, breve. (...)Todos têm direito à vida. Nenhuma legislação jamais poderá tornar lícito um ato que é intrinsecamente ilícito. Portanto, diante da ética que proíbe a eliminação de um ser humano inocente, não se pode aceitar exceções. Os fetos anencefálicos não são descartáveis".
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